domingo, 27 de novembro de 2016

VII

Meço todas as distâncias, 
para que não me assustem mais.

Conduzo a nave dos loucos 
por entre os escolhos de Deus,
até encontrar nas cinzas
o que esqueci no vasto fogo.

Caminho por entre as ruínas 
e as fúlgidas searas.

Abandono tudo
diante do tempo,
em troca de novas forças,
novos poderes,
novas exaltações sombrias, 
que só algumas palavras cantadas,
ou algumas noites felizes poderão iluminar.

Danço para que o corpo não seja 
absorvido pelo enigma.

Invoco uma ordem misteriosa e subtil,
para que possamos ser
os mensageiros ardentes que tocam no gelo.

Mas em certos dias,
perco-me no deserto,
pois é lá que deixo de procurar.

É lá que o horizonte infinito 
não me deixa ser escravo. 
Ou me é permitida uma última hesitação,
antes de o ser.

É  lá que a poeira não me deixa ser cego para ti.
É  lá que posso acreditar na santidade. 
Ou resistir a ela.
E lá que a nudez não tem remédio.
É lá que os traços das  pegadas duram 
só  até ao próximo sopro do vento.

É lá que nos toca,
muito ao de leve,
um pássaro transviado,
ou uma folha puxada pelo vento. 

É lá que a distância se mede
em ilusões desfeitas. 
E a força em preces escutadas.

domingo, 9 de outubro de 2016

Um poema de Arseni Tarkovski

VIDA, VIDA

Não acredito em pressentimentos,
e augúrios não me amedrontam.
Não fujo da calúnia
nem do veneno.
Não há morte na Terra.
Todos são imortais.
Tudo é imortal.
Não há que ter medo da morte aos dezassete,
ou mesmo aos setenta.

Realidade e luz existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia, e eu sou um dos que içam as redes,
quando um cardume de imortalidade nelas entra.

Vive na casa e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Entrar e fazer uma casa para mim.
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
e as tuas esposas, todos sentados numa mesa,
uma mesa para o avô e o neto.
O futuro é consumado aqui e agora.
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira,
eu ergui todos os dias que fizeram o passado.
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo.
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais

Escolhi uma era que estivesse à minha altura.
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe ervaçais cresciam viçosos;
um gafanhoto tocava,
esfregando as pernas, profetizava e contou-me, como um monge, que eu pereceria.

Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
e agora que cheguei ao futuro ficarei erecto sobre meus estribos como um garoto.

Só preciso da imortalidade
para que meu sangue continue a fluir de era para era.
Eu prontamente trocaria a vida por um lugar seguro e quente,
se a agulha veloz da vida
não me puxasse pelo mundo como uma linha.

(Tradução do russo de Jefferson Luiz Camargo)
Lido pelo autor no filme "O Espelho", de Andrei Tarkovski

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

VI

As minhas mãos são ocas,
quando pendem esquecidas
depois de acenarem para ti.

As minhas mãos são frágeis
quando mergulham
no rio que as impele,
como recados para deuses obscuros.

As minhas mãos são tardias,
quando penteiam
as cordas doces do alaúde
como tranças do tempo.

As minhas mãos são inocentes,
quando inventam
a geometria delicada
do teu sorriso.

As minhas mãos são firmes,
quando retesam o arco
e o mundo fica suspenso,
à espera de um sopro.

As minhas mãos ficam cegas,
quando partem
na hora do crepúsculo
e na noite partilham
os mais infames segredos.

domingo, 18 de setembro de 2016

V

Para decifrarmos o céu que nos contempla,
não basta perscrutá-lo, uma e outra vez.

É preciso olhar para ele como se lá não estivesse, 
ajustar essa visão
ao tamanho do nosso incessante reflexo,
ungido pelas águas profundas.

É preciso esquecer o que vimos após o crepúsculo, 
quando a noite dissipa as sombras, 
convoca os animais esquivos, 
e chama a si a brisa perfumada.

Porque o pulsar das estrelas
é o rasto de sonhos fugidios.
que sobem lentos dos abismos refulgentes de luz, 
é o aceno do eterno viajante, 
que te chama para contigo inventar o fogo e a dança.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

IV

Um dia, sabemos bem,
deixa-nos o sussurro misterioso das aves, 
o odor das searas,
o sol escondido nas uvas maduras. 

Um dia, abandona-nos a dança feliz da luz
antes de se enroscar aos nossos pés. 

Um dia, as tuas mãos abertas ficam vazias,
como duas taças viradas para o céu, 
depois de bebermos o mais suave dos vinhos.

Um dia, perdemos de vista o chão da tribo, 
onde nos consumíamos no cimo do fogo, 
a poeira dos caminhos, o balanço das árvores,
o sopro ligeiro da aurora.

Um dia, sabemos bem, 
só temos o desfiar dourado do leite materno.

E de repente, a paisagem fica deserta,
as sombras fustigam as áleas e as fontes.
Como que chamando para um duelo numa floresta,
onde se chega por um caminho de pedras brancas,
que atravessamos com uma carta na mão.
 
Acreditamos que, então, 
o brilho do céu leva as aves a suspender o voo,
ou os relógios se envergonham
por não conseguirem enganar o tempo,
ou que a velha mentira talvez nunca regresse.

E que algum viajante nos diga,
sim, podemos brilhar,
no meio das palavras que abraçamos
e estão fora do nosso alcance.

sábado, 10 de setembro de 2016

Carreira de tiro - 3

Tanto quanto julgo saber, na Finlândia celebra-se o Dia do Fracasso. E nós, que andamos sempre a incensar os nórdicos, não poderíamos adoptar a ideia?

É que, em boa verdade, quando olho para o lado e para o écran, só vejo heróis. Há para todos os gostos e feitios: desportivos, sado-desportivos, excelsos pais de família (os mais bocejantes), os "que as comem todas", as "que os papam todos", mas só na vizinhança, os bem sucedidos "olhem para mim, sou tão empreendedor, sei lá", um ou outro vate que se acha a si mesmo "uma grande promessa" da arte lírica, os acácios robustamente talentosos, os cultores do engraçadismo a granel, as "boas" refasteladas no sofá, os revolucionários com barriguinha, os sem cheiro que só sabem contrabandear links, os "artistas", os meio artistas, os comparadores de pilas nas caixas de comentários, os afagadores de pilas nas caixas de comentários, também conhecidos por subscreverem ou fazerem suas as palavras de salazarenta concordância, os infalíveis educadores da populaça, os jesuítas que ninguém sabe o que pensam e é impossível perceber para onde olham, os "eruditos" que simulam piedosa humildade para acomodar egos gigantescos e sofridos, os partilhadores das fotos das férias inacreditavelmente felizes, e das idas a algum lado sem irem a lado nenhum... 

Enfim, saibamos amar o semelhante! Mas que diabo, não será ainda mais importante anunciar uma ruga escondida, uma hesitação comprometedora, uma nódoa exasperante no fato, o embaraço que nos faz corar, a escorregadela infame? Sim, tudo isso. Faço parte dos que acreditam que nos damos a conhecer mais pelo que deixamos escapar do que por aquilo que queremos, à força, mostrar. Mais pela condescendência dos que nos conhecem, do que pela indulgência dos que nos estendem um tapete para aí tropeçarmos.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

III

Falavas da noite,
dos seus punhais ociosos, 
das suas fragrâncias milenares,
dos seus presságios estelares.

Uma fonte rumorejava
algures nas trevas.
Não sei se anunciando um jardim inquieto,
se chamando a si as aves longínquas,
se cantando as poucas sílabas que compõem o tempo.